A digitalização do Estado brasileiro alcançou um novo patamar com a publicação dos Decretos Federais nº 12.561 e nº 12.564, ambos de julho de 2025. Mais do que acelerar o uso de meios eletrônicos na administração pública, essas normas consolidam um modelo de governança digital ancorado na biometria — classificada pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) como dado pessoal sensível —, estabelecendo diretrizes que conciliam eficiência, segurança jurídica e proteção de direitos fundamentais.
Na prática, os decretos estruturam medidas para modernizar processos relacionados a benefícios previdenciários e operações de crédito consignado, ao mesmo tempo em que delimitam salvaguardas robustas contra riscos como fraudes, vazamentos e práticas discriminatórias, sempre com a atuação supervisora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Bases interoperáveis e transição gradual
O Decreto nº 12.561/2025 instituiu a verificação biométrica como requisito para concessão de benefícios previdenciários, adotando a Carteira de Identidade Nacional (CIN) como referência principal para a identificação dos cidadãos. Em lugar de uma transição abrupta, a norma previu uma arquitetura de interoperabilidade regulada, coordenada pela Secretaria de Governo Digital, capaz de assegurar padronização e rastreabilidade no tratamento de dados sensíveis.
Reconhecendo os limites de cobertura da CIN no momento atual, o decreto autorizou o uso de registros transitórios — como CNH, dados da Polícia Federal e do TSE —, de forma a evitar exclusão de cidadãos e descontinuidades no acesso aos serviços. Essa abordagem evidencia um olhar pragmático, ao permitir que cada órgão implemente fluxos próprios de coleta e validação biométrica conforme sua realidade operacional.
Formalização digital com consentimento qualificado
Já o Decreto nº 12.564/2025 regulamenta a formalização digital do crédito consignado, estabelecendo como requisito a realização de prova de vida biométrica e o registro de consentimento explícito e auditável do trabalhador. O objetivo é garantir que o titular detenha o controle efetivo sobre seus dados, protegendo-o contra fraudes e operações não autorizadas.
Embora a norma se baseie na exigência de consentimento, é juridicamente viável considerar, em determinados contextos, o uso das hipóteses legais do art. 11, II, “a” ou “g” da LGPD, que dispensam o consentimento quando o tratamento for necessário ao cumprimento de obrigação legal ou à prevenção de fraudes. A adoção dessas bases depende, contudo, de uma análise criteriosa que respeite os direitos previstos no art. 9º da lei e leve em conta eventuais riscos à liberdade individual do titular.
A norma também exige a produção de evidências técnicas que comprovem autoria e integridade do ato, como gravações em vídeo com movimentos específicos para atestar a vitalidade do cidadão. Esse tipo de comprovação já é utilizado em plataformas públicas, como o sistema Gov.br, e reforça a confiabilidade dos serviços digitais voltados a populações mais vulneráveis, como aposentados e pensionistas.
Supervisão regulatória e proteção preventiva
A atuação da ANPD está posicionada como elemento estruturante desse processo. Com base na LGPD, a autoridade dispõe de instrumentos para acompanhar, orientar e intervir sempre que houver indícios de riscos aos direitos dos titulares. Seu Radar Tecnológico, publicado em 2024, identificou pontos críticos no uso da biometria, como a possibilidade de desvio de finalidade e os impactos da irrevogabilidade dos dados em caso de vazamento ou erro.
A previsão de relatórios de impacto, recomendações técnicas e auditoria contínua, conforme os artigos 4º, §3º, 38 e 55-J, XIII da LGPD, permite à ANPD exercer um papel de vigilância ativa. Com isso, promove-se uma cultura de responsabilização no uso de tecnologias de identificação, reduzindo assimetrias entre o Estado e o cidadão.
Tecnologia a serviço da inclusão e da cidadania
A digitalização biométrica não está imune a desafios sociais. Grupos como idosos, moradores de áreas remotas e pessoas com restrições de acesso à tecnologia podem encontrar barreiras no uso de sistemas digitais de identificação. Por essa razão, os decretos incorporaram mecanismos de inclusão, com a manutenção de alternativas técnicas e fluxos híbridos enquanto a CIN ainda não se torna universal.
Essa escolha não é apenas operacional, mas ética: o acesso a direitos não pode depender exclusivamente da adequação tecnológica do indivíduo. Ao permitir caminhos alternativos e preservar o consentimento como elemento documentado, o modelo adotado assegura protagonismo ao cidadão no processo de autenticação, tornando-o parte ativa na proteção de seus dados.
Transparência e confiabilidade como pilares da transformação
A confiança nos serviços públicos digitais exige mais do que usabilidade: depende de infraestrutura segura, processos auditáveis e transparência institucional. Os decretos exigem a geração de logs, autenticação multifatorial e confirmação humana para decisões críticas, mitigando erros e responsabilizando eventuais falhas de sistemas automatizados.
Casos anteriores, como o de uma identificação incorreta por reconhecimento facial em 2019 no estado do Rio de Janeiro, servem como referência para a construção de um modelo que privilegia a rastreabilidade e a governança técnica. Aprender com erros passados é um passo essencial para consolidar a confiança pública nas ferramentas do Estado Digital.
Os marcos normativos de 2025 mostram que a digitalização da máquina pública pode ser conduzida de forma equilibrada, aliando inovação tecnológica à responsabilidade institucional. Ao estruturar a interoperabilidade biométrica em bases legais, auditáveis e inclusivas, o país dá um passo importante rumo à consolidação de um modelo de Estado digital centrado no cidadão, tecnicamente consistente e atento aos limites da proteção de dados.
Ainda existem pontos de atenção, como o reforço da cibersegurança e o combate a eventuais distorções de acesso. Mas o caminho regulatório agora delineado oferece parâmetros claros para o desenvolvimento de soluções digitais legítimas, seguras e socialmente responsáveis.