O ano de 2024 marcou um ponto de virada: a regulação da Inteligência Artificial deixou de ser um debate distante e passou a integrar a agenda concreta de diversos países. A União Europeia aprovou o AI Act, estabelecendo um marco jurídico abrangente; os Estados Unidos editaram diretrizes rigorosas voltadas à segurança, transparência e uso responsável; a China intensificou normas de controle sobre algoritmos considerados sensíveis. Outros países, como Canadá, Reino Unido, Japão e Coreia do Sul, avançam com propostas próprias.
Diante desse movimento, o Brasil tem a possibilidade — e o dever — de formular uma lei que una soberania, inovação e proteção de direitos. Isso exige ir além da discussão política e adotar parâmetros técnicos sólidos, alinhados ao que já se pratica nas jurisdições mais avançadas. A regulação não deve apenas antecipar problemas, mas enfrentar impactos que já se manifestam, muitas vezes sem a percepção do usuário e sem um respaldo jurídico definido.
Uma lei eficaz sobre IA parte do reconhecimento de que a tecnologia reflete decisões humanas, dados de origem e contextos de aplicação. Por isso, alguns elementos merecem atenção especial.
1. Proporcionalidade na regulação
As exigências devem ser proporcionais ao risco da aplicação. Algoritmos para entretenimento não demandam o mesmo nível de controle que sistemas capazes de decidir sobre crédito, atendimento médico ou processos judiciais. A classificação por níveis de risco, já utilizada em legislações internacionais, evita tanto o excesso de burocracia quanto a ausência de regulamentação.
2. Transparência e explicabilidade
Usuários e empresas devem ser informados quando interagem com uma IA e compreender, em termos claros, os critérios que levaram a uma decisão automatizada. Não é necessário expor código-fonte, mas assegurar a chamada “explicabilidade algorítmica”, permitindo entender o raciocínio ou a lógica probabilística aplicada.
3. Qualidade e integridade dos dados
O desempenho de sistemas de IA depende da qualidade dos dados utilizados. Bases que contêm distorções raciais, socioeconômicas ou regionais tendem a reproduzir e ampliar essas desigualdades. Para mitigar esse risco, é essencial prever auditorias, mecanismos de validação e correção, além de políticas robustas de consentimento e privacidade, compatíveis com a LGPD e acordos internacionais.
4. Supervisão humana e responsabilização
Em aplicações que afetam diretamente a vida das pessoas, deve existir possibilidade de revisão ou intervenção humana. Essa prática, conhecida como human-in-the-loop, precisa ser garantida por lei, assim como a definição de responsabilidades em caso de falhas ou danos. A delimitação clara de deveres para desenvolvedores, fornecedores e operadores evita disputas judiciais prolongadas e a diluição da responsabilidade.
5. Integração internacional sem perder autonomia
A IA opera em escala global, o que exige compatibilidade mínima entre regras de diferentes países. É importante que a legislação brasileira permita diálogo técnico com padrões internacionais, preservando a autonomia regulatória, mas facilitando a atuação de empresas em múltiplas jurisdições.
O desafio está em encontrar um equilíbrio que permita inovação e, ao mesmo tempo, proteja direitos fundamentais. Mais do que limitar, a lei deve oferecer uma base segura para o desenvolvimento responsável.
Paralelamente, organizações públicas e privadas precisarão implementar estruturas internas de governança de IA, incluindo comitês de ética, processos de auditoria contínua e monitoramento de riscos. A convergência entre regras externas e práticas internas será determinante para consolidar a confiança no uso dessa tecnologia.
O avanço da Inteligência Artificial é inevitável. O que está em jogo é a forma como o país irá moldar essa transformação: de modo estruturado, seguro e transparente, ou deixando que decisões técnicas e jurídicas fiquem sempre um passo atrás do próprio desenvolvimento tecnológico.