Com a digitalização das relações de consumo, práticas antes restritas ao ambiente físico passaram a incorporar rotinas tecnológicas que, apesar de promoverem facilidades, também impõem riscos à privacidade. Hoje, uma simples ida à farmácia pode envolver o fornecimento de CPF, telefone e dados sobre a saúde do consumidor, muitas vezes sem a devida clareza sobre a forma e a finalidade desse uso.
Essa realidade impõe uma obrigação ainda maior às farmácias e drogarias no que se refere à conformidade com as normas de proteção de dados e de defesa do consumidor. Quando se trata da coleta de dados pessoais para aplicação de descontos ou cadastro em programas de benefícios, é imprescindível que as informações sejam prestadas de maneira clara, objetiva e acessível, permitindo ao consumidor uma escolha consciente e livre.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ao estabelecer fundamentos como a autodeterminação informativa, o respeito à privacidade e a transparência, exige que qualquer tratamento de dados pessoais esteja devidamente amparado por uma base legal. O consentimento, nesses casos, não pode ser presumido ou obtido por imposição disfarçada, tampouco condicionado ao fornecimento de um benefício cujo valor real não é previamente conhecido.
É comum que consumidores sejam levados a fornecer seu CPF em troca de supostos descontos que, ao final, não se concretizam de forma mensurável. Sem a apresentação clara do preço cheio e do valor efetivamente abatido, o que se configura é uma prática potencialmente enganosa, em afronta tanto ao Código de Defesa do Consumidor quanto à LGPD. A ausência de transparência nesses casos compromete a confiança na relação comercial e viola o direito do consumidor à informação adequada.
Adicionalmente, o fornecimento de dados pessoais como pré-requisito para consultar preços ou realizar compras sem que haja justificativa clara e base legal apropriada pode ser considerado abusivo. A prática fere princípios legais e éticos e representa um desrespeito à autonomia do consumidor, que deve poder avaliar as condições de compra antes de decidir compartilhar qualquer dado pessoal.
Outro aspecto que demanda atenção é a forma como as informações sobre a proteção de dados são disponibilizadas aos consumidores. A veiculação dessas informações por meio de QR Codes, que direcionam a textos extensos e de difícil compreensão, não cumpre a exigência legal de comunicação clara, ostensiva e acessível. A linguagem técnica ou excessivamente jurídica, além de inadequada para o público em geral, afasta o consumidor de seu direito à informação.
É dever do estabelecimento apresentar essas informações nos próprios espaços físicos da loja, de forma visível e compreensível. As políticas de privacidade precisam estar ao alcance do consumidor no momento da coleta de dados, e não apenas mediante redirecionamento para documentos digitais que não explicam de modo claro o que está sendo feito com as informações coletadas.
A legislação prevê, ainda, que o titular de dados pessoais pode peticionar diretamente aos responsáveis pelo tratamento ou acionar os órgãos de defesa do consumidor para garantir seus direitos. Isso demonstra que a proteção de dados não se limita à esfera administrativa da ANPD, mas também integra o campo das relações de consumo, sendo passível de fiscalização por Procons e outros entes públicos.
É nesse sentido que iniciativas locais, como normas emitidas por secretarias municipais, ganham relevância. A recente resolução conjunta publicada por dois órgãos da administração municipal de uma capital brasileira traz orientações específicas voltadas às farmácias, promovendo diretrizes claras sobre como o tratamento de dados deve ser realizado com respeito aos princípios legais. A norma estabelece, entre outras medidas, que não se pode condicionar o fornecimento de dados pessoais à consulta de preços, que a informação sobre o tratamento de dados deve ser prestada de forma acessível, e que a concessão de descontos precisa ser efetiva e transparente.
Importa destacar que essas exigências não impedem a coleta legítima de dados para programas de fidelidade, cadastro em clubes de benefícios ou aquisição de medicamentos controlados. O que se busca é assegurar que o consumidor tenha acesso à informação sobre as condições de uso dos dados antes de fornecê-los, podendo optar por aderir ou não a determinada proposta de forma consciente.
O prazo de adequação previsto na norma demonstra que a intenção não é punir o setor, mas sim promover uma transição orientada para o cumprimento da legislação. A medida confere tempo hábil às farmácias para reverem suas práticas, treinarem suas equipes e ajustarem sistemas, de modo a garantir uma experiência de compra que respeite os direitos do consumidor e do titular de dados pessoais.
Portanto, ao assumir uma posição ativa na regulamentação local do tratamento de dados pessoais, o poder público reforça a importância da ética e da responsabilidade nas relações de consumo. A proteção dos dados é, antes de tudo, uma proteção à dignidade do cidadão, e deve ser encarada com seriedade por todos os agentes envolvidos no comércio varejista, especialmente na área da saúde. Trata-se de um caminho necessário para assegurar transparência, segurança e confiança nas relações entre empresas e consumidores.