VESTÍGIOS VIRTUAIS E PERSONALIDADE: O QUE O DIREITO DEVE PROTEGER NO MUNDO DIGITAL

11 de junho de 2025

Nas últimas décadas, o modo como os indivíduos constroem e manifestam suas identidades passou por transformações profundas. Uma parte significativa da experiência humana foi transferida, de forma progressiva e muitas vezes imperceptível, para o meio digital. O cotidiano, as relações afetivas, os posicionamentos públicos e até mesmo os hábitos mais triviais encontram registro em redes sociais, aplicativos de mensagens e outras plataformas virtuais. Assim, formou-se uma espécie de espelho digital da subjetividade, composto por fragmentos que, reunidos, contam a história de uma pessoa.

Esse conjunto de informações não se limita a dados objetivos ou registros administrativos. Ele carrega nuances afetivas, pensamentos íntimos, memórias e traços de personalidade. Um comentário feito em um momento de emoção, uma playlist compartilhada, uma mensagem antiga — tudo isso adquire valor quando compreendido como parte de uma narrativa de vida. Trata-se de um registro existencial disperso, mas legítimo, que ultrapassa o simples conteúdo informacional.

A partir dessa compreensão, surge uma necessidade: refletir juridicamente sobre a natureza desses vestígios digitais. Não apenas como objetos de proteção de dados ou como manifestações da liberdade de expressão, mas como extensão da própria personalidade. Quando os rastros digitais passam a expressar sentimentos, opiniões e experiências acumuladas ao longo dos anos, eles ganham uma dimensão que exige tutela mais cuidadosa, inclusive após a morte de seu titular.

Há ainda um outro fator que amplia a relevância do tema. O avanço das tecnologias de inteligência artificial já permite, de modo experimental, a simulação de traços de comportamento e linguagem com base em registros digitais acumulados. A possibilidade de recriação de avatares inteligentes a partir de históricos pessoais, antes restrita ao campo da ficção, torna-se cada vez mais tangível. Isso impõe ao Direito o dever de repensar seus institutos e considerar que a vida digital também pode carregar significados existenciais e até mesmo legado.

A exclusão arbitrária de perfis, conteúdos ou históricos digitais, seja por empresas privadas ou por decisões administrativas sem contraditório, não representa apenas uma violação ao direito de expressão. Pode configurar o apagamento de parte de uma identidade construída com o tempo. Não se trata da simples remoção de um conteúdo, mas da eliminação de um acervo simbólico que carrega lembranças, posicionamentos, vínculos e até mesmo amadurecimentos pessoais. A supressão desses registros afeta não apenas o titular da conta, mas também seus familiares, amigos e aqueles que, direta ou indiretamente, partilharam daquela vivência.

Nesse contexto, é preciso adotar uma nova leitura jurídica: reconhecer que a identidade digital não é mero acessório da vida moderna, mas parte integrante da personalidade. Isso demanda mecanismos normativos que resguardem esse patrimônio, assegurando que qualquer exclusão ou modificação de registros digitais respeite garantias mínimas de informação, defesa e proporcionalidade.

A Constituição brasileira já oferece fundamentos sólidos para essa construção, ao estabelecer a dignidade da pessoa como princípio estruturante da ordem jurídica. A partir dessa base, é possível reconhecer que os registros digitais carregam valores ligados à memória, à autonomia, à identidade e à história pessoal de cada cidadão. Essa interpretação se alinha, inclusive, a um esforço mais amplo de preservação da memória coletiva e de proteção da diversidade de narrativas humanas no ambiente virtual.

Essa preocupação se intensifica quando observamos casos concretos de exclusões definitivas e sem justificativa transparente, em que perfis inteiros — construídos ao longo de muitos anos — são simplesmente eliminados. Em episódios como esses, o impacto vai além da perda de conteúdo. O que está em jogo é a possibilidade de reconstrução futura de histórias pessoais e a preservação da identidade em sua dimensão afetiva e simbólica. Não se trata de um direito abstrato, mas de um elemento que poderá, inclusive, compor a memória de gerações futuras.

A supressão unilateral de um perfil digital, especialmente quando realizada sem garantias mínimas, revela um desequilíbrio de poder entre usuários e as grandes plataformas. Há um espaço normativo pouco explorado, no qual a vontade privada se impõe com poucos freios, em prejuízo da autonomia e da dignidade do indivíduo. Ao mesmo tempo, a omissão regulatória do Estado contribui para consolidar essa fragilidade. O Direito, nesse ponto, permanece aquém da realidade vivida por milhões de pessoas que constroem vínculos, memórias e identidade nos meios digitais.

É preciso, portanto, inaugurar uma etapa normativa mais atenta à permanência da existência digital. A proteção jurídica deve incorporar a ideia de que os registros acumulados ao longo da vida formam um patrimônio imaterial legítimo, digno de ser preservado. Esse reconhecimento não se limita à proteção de dados, mas envolve o respeito à trajetória humana em sua dimensão contemporânea. Garantir esse direito é, também, garantir que cada pessoa possa deixar um rastro legítimo de quem foi, não apenas para si, mas para aqueles que ainda virão.